domingo, 17 de setembro de 2017

Vamos eleger as eleições

O agendamento de uma partida do campeonato português de futebol entre dois dos clubes com maior projecção nacional para o dia das próximas eleições autárquicas colocou em cima da mesa a possibilidade de se criar legislação que impeça a realização de eventos desportivos em dias de os portugueses serem chamados às urnas de voto.

Portugal é um país que dá muita importância aos pontapés na bola, aos pontapés na canela, aos fora-de-jogo e às grandes penalidades. Mas não é só o futebol que distrai os portugueses de cumprir o seu dever cívico. Também o fazem a missa, o passeio de Domingo, a saída para os bares e discotecas na noite / madrugada anterior.

Proíba-se tudo isso: proíba-se a ida aos supermercados, aos centros comerciais ou às lojas de rua. Aliás, encerrem-nos e, pelo sim pelo não, bloqueiem também as caixas multibanco e os terminais de pagamento automático. Proíba-se o segundo ou terceiro emprego para compor o orçamento familiar. Feche-se o acesso às praias e aos campos. Devolva-se o valor do bilhete para concertos. Deixe-se a prole fechada no quarto, com bastantes soporíferos misturados no arroz, na massa ou no puré. E não o façam apenas no Domingo, dia das eleições; façam-no logo à meia-noite de 6ª para Sábado, de modo a que todas as portuguesas e todos os portugueses inscritos nos cadernos eleitorais, mesmo aqueles que já partiram deste mundo, possam, convenientemente, reflectir, sem quaisquer distracções, num dia e votar no outro.

Talvez não fosse má ideia ir um pouco mais além e obrigar a que toda a gente, em ano de eleições, marcasse e gozasse férias nas duas semanas que as antecedem, de modo a seguir integralmente a campanha eleitoral no seu período oficial. E que toda a gente fosse obrigada a estar em casa, a seguir essa campanha pela televisão, pela rádio ou pela internet, se não lhe for possível estar em qualquer comício ou arruada de algum dos candidatos. Mais: deveríamos seguir a Coreia do Norte e controlar as notícias divulgadas por todos os meios de comunicação social: apenas são transmitidos discursos e acções de campanha; o resto do mundo poderá esperar. Censurem-se as novelas, as séries, os filmes e os documentários.

Mesmo no campo da saúde, todos os médicos deveriam ter a devida atenção na marcação de cirurgias: "a operação de que tão urgentemente está necessitado(a) vai ter de ser adiada para depois das eleições, pois o período pós-operatório é longo e, caso fosse "à faca" na data marcada, não iria poder votar". Proíba-se de imediato o falecimento.

Proíba-se, por decreto, tudo aquilo que impeça de ver e ouvir as lautas promessas das candidaturas que tanto alentam, as ínclitas, nobres e elevadas denúncias e insinuações dirigidas aos adversários, as sinceras auscultações populares nas feiras e mercados, os genuínos cumprimentos que são impossíveis de fazer durante um mandato. E tudo aquilo que também impeça, a seguir, de ouvir os sentidos e veros discursos, aqueles que nos convencem que todos, mas todos os candidatos saíram vitoriosos, tendo sido derrotados, apenas e só, os eleitores.

3 comentários:

  1. Sou um agnóstico que aceita, compreende e respeita o “defeso” a que o futebol e outras actividades são sujeitas durante o dia de Natal, mas sou também amante de futebol a quem não repugna, bem pelo contrário, igual temperança em dia de eleições livres. Quem viveu tantos anos sem poder exercer esse direito, consagra-lhe naturalmente uma solenidade superior.
    Após o 25 de Abril, viveram-se decénios sem que fosse necessária qualquer intervenção legislativa para recordar aos cidadãos essa solenidade. Agora, porém, e por não ser já a primeira vez, tornou-se conveniente intervir. É pena, pois não devia ser preciso vir lembrar que as eleições não são umas coisas como outras quaisquer e que, quando se tenta esvaziá-las da elevação e do simbolismo que devem ter, equiparando-as a fenómenos corriqueiros e quotidianos, mais não se faz do que praticar delitos de lesa-democracia.
    Oxalá não se tenha de vir a fazer o mesmo relativamente ao dia de Natal. Isto não pode ser o vale-tudo. E, para mim, esta legislação até será redundante: obviamente, elejo as eleições.

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  2. Que as eleições, sejam elas que tipo forem, são importantíssimas, mas será mesmo o futebol a origem de tanta abstenção? E a única? Porque não se proíbe, mas mesmo tudo aquilo que possa distrair os eleitores?

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    1. Percebo o seu ponto de vista. É uma opinião, e bastante diferente da minha, que, aliás, vou tentar fundamentar.
      Parece-me errado comparar coisas de planos distintos: se se proíbem jogos de futebol, por que razão não se proíbe a abertura de supermercados?! Ora, o que eu posso fazer em centros comerciais, caixas de multibanco, praias e campos, coisas perto da minha residência, se não for num dia, será no outro, ou na véspera. Pelo contrário, um jogo de futebol, que pode ser na Madeira (ou no Continente, para os madeirenses), é irrepetível e, por razões várias, eu até poderei querer muito presenciá-lo. Quanto às missas, pelo menos os católicos não se poderão queixar: há igrejas em todo o lado.
      Os segundos empregos deveriam originar outro tipo de considerações que, contudo, não cabem aqui, acho eu. Já os concertos, embora também irrepetíveis, são promovidos por quem sabe do assunto e que, ou me engano muito, ou levam em linha de conta a ocorrência em simultâneo de outros acontecimentos que lhes desfalquem as bilheteiras. Como, por exemplo, as eleições.
      Os cirurgiões e as suas operações, bem como a morte, penso serem indiscutíveis. Até me admiro não ter dado como um bom exemplo para a sua tese o de fechar as Urgências hospitalares em dia de eleições…
      Não falemos em sedar as criancinhas, que não me parece vir ao caso, não é bom exemplo, e não passa pela cabeça de ninguém (acho eu!) praticar tal barbaridade para poder exercer o direito de voto.
      Por outro lado, o problema não está em querer impedir que os eleitores se distraiam ou que não reflictam. A liberdade individual que ainda temos (que raio tem a Coreia do Norte, o recolher obrigatório, a censura e o visto prévio da Comunicação Social a ver com isto tudo?) permitem-nos isso e até a abstenção, que é um direito mais que legítimo. Mais: não sofremos qualquer multa por não votar, nem há lei (no domínio do jurídico) que nos obrigue a fazê-lo.
      É óbvio que não é o futebol a origem de tanta abstenção, e muito menos a única. Mas isso é mais uma razão, penso eu, para que façamos tudo o que é possível para a diminuir.
      Termino como comecei, percebo o seu ponto de vista: está contra esta medida dos jogos de futebol e pronto! Tem toda a legitimidade para isso. Não concordando consigo, até apreciei, aqui ou ali, a ponta de ironia que utilizou.

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